“DESCENDIT AD INFERNA”:
UMA ANÁLISE DA EXPRESSÃO “DESCEU AO HADES”
NO CRISTIANISMO HISTÓRICO
Heber Carlos de Campos*
A expressão “desceu ao Hades,” com referência a Cristo, não é encontrada em nenhum lugar das Escrituras. Afirma-se que o Redentor “desceu às regiões inferiores, à terra” (Ef 4.9), 1 mas não que ele desceu a um lugar chamado Hades depois de sua morte e sepultamento. Todavia, essa expressão apareceu em dois credos da igreja cristã antiga, ainda que com palavras diferentes. A primeira ocorrência está no Credo Apostólico, que tem a expressão latina “descendit ad inferna” (desceu aos infernos/Hades), e a outra encontra-se no Credo de Atanásio, com a expressão latina “descendit ad inferos” (desceu às regiões inferiores).
O estudo dessa matéria será desenvolvido abaixo, primeiro historicamente, depois teologicamente e então biblicamente.
I. ANÁLISE HISTÓRICA DA “DESCIDA AO HADES”
A expressão “desceu ao Hades,” que aparece no Credo Apostólico, não faz parte das suas formas mais antigas. Ele sofreu alterações posteriores, uma das quais foi a expressão acima. Witsius afirma:
É digno de nota que, antigamente, aqueles credos que possuíam o artigo sobre a descida de Cristo ao inferno, não continham o artigo relativo ao seu sepultamento, e aqueles nos quais o artigo com respeito à descida ao inferno foi omitido, de fato continham o artigo relativo ao sepultamento. 2
Rufino, o bispo da igreja de Aquiléia, fez alguns comentários sobre o Credo Apostólico em sua Expositio Symboli Apostolici, por volta do final do século IV, dizendo que essa cláusula nunca foi encontrada nas edições romanas (ou ocidentais) do credo. Rufinus acrescenta que a intenção da alteração do Credo em Aquiléia não foi a de acrescer uma nova doutrina, mas a de explicar uma antiga e, portanto, o credo de Aquiléia omitiu a cláusula “foi crucificado, morto e sepultado” e a substituiu por uma nova cláusula, “descendit ad inferna.” 3
Portanto, originalmente a expressão descendit ad inferna não fazia parte do Credo Apostólico. No tempo de Rufino, ela apareceu inserida no Credo, mas não como um acréscimo ao que já havia, sendo apenas uma expressão substitutiva de “crucificado, morto e sepultado.” O Credo de Atanásio 4 (escrito por volta do século V ou VI) segue mais ou menos a mesma idéia do Credo de Aquiléia, onde a expressão “desceu ao Hades” substitui a expressão “sepultado,” não sendo um acréscimo a ela. Até então, não havia nenhuma modificação significativa na doutrina cristã com respeito à situação da pessoa do Redentor ao morrer, pelo menos nas traduções mais conhecidas do Credo.
Enquanto houve a omissão da cláusula “sepultado” e o aparecimento da cláusula substituta “desceu ao Hades,” ou vice-versa, não surgiu nenhum problema teológico novo. Este apareceu quando as duas expressões acima apareceram no mesmo Credo, uma após a outra. Por volta do século VII, a cláusula descendit ad inferna apareceu em outros credos, mas como um acréscimo a “crucificado, morto e sepultado,” e não como expressão substitutiva dessas coisas acontecidas a Cristo. A partir de então, uma nova doutrina começou a aparecer dentro da igreja cristã, ou seja, a descida de Cristo a um local chamado Hades, após o seu sepultamento. Daí as várias traduções do Credo Apostólico aparecerem assim: “Padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado. Desceu ao Hades. Ao terceiro dia, ressurgiu dos mortos.”
De onde surgiu essa inserção? É difícil identificar a sua trajetória, mas há alguns indícios. Witsius menciona que, por volta de 359, “encontraram-se em Constantinopla cerca de cinqüenta pessoas, e lá compilaram um Credo, no qual professavam que criam em Cristo, que foi morto e sepultado e que ‘penetrou as regiões subterrâneas, nas quais até mesmo o Hades foi golpeado com terror’,” 5 o que dá a entender um sentido diferente e que vai além de um sepultamento, contrastando com o entendimento de Rufino. J. N. D. Kelly também menciona que na doxologia da Didascalia siríaca, que parecia uma formulação credal, havia a seguinte expressão: “Que foi crucificado sob Pôncio Pilatos e partiu em paz, a fim de pregar a Abraão, Isaque e Jacó e a todos os santos a respeito do fim do mundo e da ressurreição dos mortos.” 6
O descensus (“descida”), como uma atividade de Cristo em um mundo inferior entre a sua morte e a sua ressurreição, não apareceu, a princípio, nas formulações credais da igreja ocidental. Porém, sob a influência do pensamento da igreja oriental desde tempos bem antigos, 7 veio a aparecer posteriormente até mesmo nas formulações ocidentais. Kelly afirma: “Deveria ser observado que após Santo Agostinho é que prevaleceu o hábito ocidental de explicar 1 Pedro 3.19 como um testemunho da missão de Cristo aos contemporâneos de Noé muito antes de sua encarnação.” 8
A doutrina, que usualmente é chamada de “Descida ao Hades,” desenvolveu-se de forma efetiva na igreja cristã com o passar dos séculos, numa tentativa de reviver a doutrina pagã do Hades. Dentro do pensamento grego havia um lugar para onde iam todos os mortos — o Hades. Este era dividido em dois setores: o Elísio (para onde iam todos os bons) e o Tártaro (para onde iam todos os maus). Essa idéia greco-pagã é razoavelmente coerente, pois pelo menos os maus iam para o lugar chamado inferno, que é uma das traduções de Tártaro, e os bons iam para o paraíso, que é a tradução de Elísio.
Alguns cristãos, com base numa análise equivocada do texto de 1 Pedro 3.18-20 9 e com o apoio da expressão “desceu ao Hades” inserida no Credo Apostólico, tomando a idéia de Hades do conceito pagão, acabaram criando um Hades inconsistente, também com duas divisões: os bons vão para o Paraíso e os maus para o Hades. Isto quer dizer que, se alguém perguntar a esses cristãos qual é a composição do Hades, a resposta será: Paraíso e Hades. A visão pagã dessa matéria é muito mais consistente que a dos cristãos, influenciados pelo conceito pagão de Hades. Do século VII em diante, apareceu uma nova doutrina sobre a atividade de Jesus Cristo após a sua morte e sepultamento num outro lugar que não o céu.
Portanto, durante a história da igreja o pêndulo vai oscilar entre a descida de Cristo ao Hades enquanto esteve entre nós (especialmente ao ser crucificado e sepultado) e uma descida a um local chamado Hades, entre a sua morte e ressurreição. Neste último caso, o grande problema é definir o que ele foi fazer lá. É disso que trataremos com mais detalhes neste ensaio.
II. ANÁLISE TEOLÓGICA DE VÁRIAS TRADIÇÕES SOBRE A DESCIDA AO HADES
As várias tradições teológicas mencionadas abaixo, refletindo os seus pressupostos teológicos, deram as suas próprias explicações à expressão “desceu ao Hades” na história da igreja. Houve várias divergências entre os herdeiros da Reforma, que serão analisadas ligeiramente adiante.
A. Visão da Tradição Católica.
O entendimento católico é o de que Cristo, após a sua morte, foi ao limbus patrum. 10 Na teologia católica, esse lugar é para onde vão os mortos que não são salvos pela graça, mas que não podem ser classificados como pagãos ou mesmo como pecadores réprobos. Esse lugar fica nas bordas do inferno e do purgatório; todavia, não deve ser confundido com eles. O limbus patrum, segundo a teologia católica, não é um lugar de tormentos. É o “seio de Abraão,” ao qual Cristo se refere na parábola do rico e Lázaro. O inferno é o lugar de condenação eterna enquanto que o purgatório é um lugar temporário de punição purgativa reservada para os cristãos que morrem com as manchas dos pecados veniais ou que morrem sem a devida penitência pelos seus pecados.
No limbus patrum, os santos do Antigo Testamento esperavam a sua redenção ser consumada por Jesus Cristo, o que se deu em seu descensus ao Hades. Ali Jesus concedeu às almas dos santos do Antigo Testamento que haviam morrido os benefícios do seu sacrifício expiatório, pois eles estavam esperando o anúncio final da sua salvação. Essa idéia católica desenvolveu-se principalmente na Idade Média, quando se tornou popular.
Os teólogos escolásticos também ensinaram que, ao mesmo tempo em que uma descida temporal e espacial ocorreu somente no limbus patrum, outros efeitos dessa descida estenderam-se a outras regiões do Hades, tais como a manifestação da glória de Cristo sobre o diabo e os condenados e o cumprimento da esperança para os do purgatório. 11
Portanto, se essa explicação é correta, Jesus Cristo teria descido especificamente a um dos compartimentos do Hades, que é o lugar dos bons, anunciando-lhes a salvação consumada. Ele não foi efetivamente ao lugar dos ímpios.
B. Visão da Tradição Anglicana.
Por volta de 1537, a teologia anglicana, em uma formulação semi-protestante elaborada no tempo de Henrique VIII, sustentava uma doutrina sobre a descida de Cristo ao Hades semelhante à noção católica, mas com alguns aspectos distintos: a alma de Cristo desceu ao inferno para conquistar a morte e o demônio e para libertar as almas “daqueles homens justos e bons, que desde a queda de Adão morreram por causa de Deus e na fé e na crença deste nosso Salvador Jesus Cristo, que estava para vir.” Sua conquista do demônio destruiu qualquer reivindicação que o diabo tinha sobre os homens, e a descida foi parte do “resgate” pago por Cristo. 12
No período do rei Eduardo VI (1547-1553), houve algumas variações no conceito da descida ao Hades. Thomas Becon elaborou um catecismo, 13 onde pergunta: “Cristo sofreu dores também no inferno?” Então, ele responde:
De modo algum. Pois quaisquer que tenham sido as dores que tivesse que sofrer por nossos pecados e impiedades, ele as sofreu todas em seu bendito corpo sobre o altar da cruz. 14
Embora esteja absolutamente certo nisso, Becon também acrescenta que “ele não desceu ao inferno como uma pessoa culpada para sofrer, mas como um príncipe valente para conquistar...” 15
Essa concepção trouxe modificações ao pensamento católico, sendo um pouco mais imaginativa que a tradição anterior. No seu catecismo, Becon deixou transparecer não somente uma teologia de pagamento de penalidade no Hades, mas também uma espécie de teologia do triunfo, 16 mesmo estando Jesus Cristo no estado de humilhação, evidenciando uma ligeira semelhança ao pensamento do luteranismo influenciado por Melanchton, que estudaremos adiante.
C. Visão da Tradição da Reforma Radical.
Em linhas gerais, há três correntes dentro da reforma radical 17 com respeito ao descensus. Por essa razão, a exposição dessa corrente será um pouco mais longa:
1. O DESCENSUS COMO UM ATO DIVINO
Kaspar Schwenckfeld (1489-1561) 18 sustentou que um Jesus divino havia descido ao inferno e esse foi um ato unicamente de seu próprio ser divino. Nada de sua natureza humana foi ao Hades. O “espírito vivificado” é o Espírito Santo através do qual a natureza divina foi e pregou no Hades. A idéia é a de um Jesus celestial descendo ao inferno, estabelecendo um púlpito para pregar aos mortos do mesmo modo como o fez enquanto pregou aos vivos: “[Cristo] desceu à prisão [do inferno] e pregou através do Espírito, proclamando-lhes a salvação e o evangelho da graça pelo qual eles haviam estado esperando com grande expectativa.” 19 Jesus veio do céu e “tirou todas as suas almas da masmorra da prisão, e as conduziu consigo para o seu reino celestial e ao lugar preparado, e deixou vazia a corte exterior do inferno.” 20 Esta última afirmação de Schwenckfeld é espantosa! O inferno esvaziou-se com a obra de pregação do Jesus celestial! Não ficou ninguém na condenação. É uma outra maneira de ensinar um universalismo salvador. Além disso, não há nada de humano naquilo que Jesus teria feito no inferno. Era típico do movimento da reforma radical uma espécie de docetismo, um movimento teológico na história da igreja que negou a plena encarnação e humanidade de Jesus Cristo. Além disso, não foi o Jesus divino que pregou, mas a Terceira Pessoa da Trindade, o Espírito Santo.
2. O DESCENSUS COMO UM ATO HUMANO
Agora é a vez dos anabatistas Johannes Schlaffer e Johannes Spittelmaier, que ensinaram uma idéia totalmente oposta à anterior. Quem desceu ao inferno foi um Jesus totalmente humano. A descida ao Hades foi uma função da natureza humana do Redentor e é um ritual pelo qual somente o homem deve passar. “Além disso, foi o Jesus mortal que desceu e o Pai divino quem o libertou de lá.” 21
O descensus foi realizado por um Jesus humano, que carece da ajuda do Pai para ser resgatado, antes que por um ser divino. Todavia, o sentido importante do descensus não foi a encarnação, mas a cruz. Este pensamento é bem diferente do primeiro porque torna o descensus algo que aconteceu neste mundo, não num mundo inferior, localizado fora de nosso mundo. O colega de Schlaffer, Spittelmaier, identificou “o inferno deste mundo” de Schlaffer com o inferno de perseguição nas mãos dos cristãos ortodoxos. 22
Portanto, na concepção desses anabatistas, todos os cristãos que sofrem neste mundo por causa de Cristo compartilham dos mesmos tormentos que Jesus suportou. Esses sofredores são libertados dos sofrimentos infernais do futuro porque já experimentaram os sofrimentos semelhantes aos de Cristo. 23 Nesse caso, os sofrimentos de Cristo sobre a cruz foram mais um exemplo para os seus, 24 e não sofrimentos penais, diminuindo-se, assim, o valor substitutivo e penal dos sofrimentos de Cristo.
3. O DESCENSUS COMO UM ATO DO SER DIVINO E DOS SERES CELESTIAIS E HUMANOS
Uma outra variação do descensus entre os simpatizantes da reforma radical foi a de Miguel Serveto (1511-1553), 25 que Friedman denomina de bizarra. 26 À semelhança de Schwenckfeld, ele cria que o corpo de Cristo era composto de material celestial, sendo acentuadamente divino. 27 Todavia, Cristo não poderia ficar despojado de sua humanidade ao ser confrontado com Satanás no inferno. A humanidade de Cristo está vinculada ao seu pacto pessoal com o crente, dentro de quem todo mal e o pecado residem. Embora crendo na divindade de Cristo, Serveto “acrescentou uma dimensão totalmente nova à teoria do descensus, porque viu esse evento como um capítulo adicional da batalha cósmica e eterna entre Deus e Satanás, que eventualmente culmina no Apocalipse.” 28 A fim de se entender como Deus falhou na batalha contra Satanás e como o Filho tentou descer ao inferno mas também deixou de alcançar a vitória, é necessário conhecer a teoria do mal esposada por Serveto. 29 Desde a Queda, Satanás tomou posse da terra, ocasionando a retirada de Deus do ser humano e a entrada da serpente no mesmo. Quando Jesus desceu aos infernos “para resgatar os santos do Antigo Testamento, ele não pode destruir o poder de Satanás dentro de sua própria cidadela.” Escrevendo a Calvino, “Serveto observou que Cristo não desceu à sepultura ou ao lugar onde os corpos dos mortos são colocados, mas na corte mais interior do inferno, onde as almas são tornadas cativas.” 30 Todavia, os esforços divinos foram frustrados porque Satanás encarnou-se neste mundo como o papa, que fala pela igreja de Cristo. Os crentes do Antigo Testamento foram libertos, mas a igreja cristã está sob as garras de Satanás encarnado. A doutrina cristológica e trinitária da igreja desde Nicéia é o ensino pervertido de Satanás. 31
Como Deus havia falhado no Éden e Cristo falhou em seu descensus, Deus providenciou outro descensus com manifestação divina, o qual, no entender de Serveto, haveria de ocorrer em 1585, com a descida do arcanjo Miguel. “Após a glorificação do Anticristo (a forma papal de reinado) uma nova glorificação de Cristo é necessária.” 32 Além dessa manifestação do arcanjo Miguel, os cristãos também participam dessa luta contra Satanás. Segundo o pensamento de Serveto, todos devem descer ao inferno e expor suas almas à morte sangrenta na luta contra o Anticristo. 33 Para Serveto, um Jesus divino desceu ao inferno para libertar os crentes do Antigo Testamento e todos os cristãos devem reproduzir em suas próprias vidas a batalha de Cristo contra Satanás. O cumprimento do descensus se daria somente em 1585, quando o arcanjo Miguel haveria de descer para destruir a Satanás. 34
D. Visão da Tradição Luterana.
A interpretação luterana é bem diferente da interpretação das tradições anteriores. Embora Jesus Cristo tenha ido literalmente ao Hades entre a sua morte e ressurreição, o propósito foi o de proclamar a sua vitória sobre Satanás. Lutero vê nesse descensus a conjunção do triunfo de Cristo sobre Satanás com a idéia de levar cativo o cativeiro.
A grande dificuldade dessa interpretação é que ainda não tinha havido nenhuma manifestação de vitória de Cristo, pois a ressurreição ainda estava por acontecer. O resultado do pensamento de Lutero é que, na tradição luterana, a descida ao Hades é o primeiro estágio da exaltação de Cristo.
Na teologia luterana, o descensus ao Hades é tomado com muita seriedade por causa da importância da expressão para essa tradição da Reforma. Todavia, os luteranos não se aventuram a explicar o descensus em seus detalhes, pois deve ser aceito somente pela fé. 35 Não é fácil reconciliar as diferentes afirmações de Lutero a respeito da descida de Cristo ao Hades, 36 pois ora ele falava da mesma em termos metafóricos, quando Cristo conquistou Satanás, ora em termos literais. 37 Todavia, parece-nos que foi Melanchton quem mais influenciou o luteranismo posterior, porque afirmou uma descida real e espacial de Jesus ao Hades e, acima de tudo, tornou esse ato de Jesus uma parte do seu triunfo. 38
O ensino do luteranismo confessional aparece em dois lugares da Fórmula de Concórdia, que é um dos símbolos de fé luteranos. A Fórmula de Concórdia tem duas partes: a Epítome e a Declaração Sólida. Na Epítome está escrito: “Porque é suficiente que saibamos que Cristo desceu ao inferno, destruiu o inferno para todos os crentes e redimiu-os do poder da morte, do diabo e da condenação eterna das mandíbulas infernais.” 39 Na Declaração Sólida, há a seguinte afirmação: “Nós simplesmente cremos que a pessoa total, Deus e homem, após o sepultamento desceu ao inferno, conquistou o diabo, destruiu o poder do inferno e tirou do diabo o seu poder.” 40
Lutero cria que Jesus Cristo, em sua natureza humana e divina, desceu ao inferno literalmente. Na única vez em que mencionou o assunto, ele disse: “Eu creio no Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, que morreu, foi sepultado e desceu ao inferno.” 41 Portanto, para o pensamento luterano, a ida ao inferno foi posterior ao sepultamento.
E. Visão da Tradição Arminiana.
É comum entre muitas pessoas a idéia de que a morte não coloca um fim no período em que Deus opera com a sua graça para salvar pecadores. Elas sempre tentam arranjar novas oportunidades para os ímpios serem salvos, mesmo que seja após a sua morte. Esse é o caso de vários estudiosos de orientação arminiana, como veremos adiante.
Essa tendência da tradição arminiana evidencia-se naqueles que sustentam a noção mais comum desde os tempos antigos, de que Cristo teria descido ao Hades para pregar o evangelho não somente “a todos os piedosos falecidos na antiga dispensação que creram nele e compartilharam da salvação cristã,” 42 mas também aos mortos em geral que não ouviram a pregação enquanto viveram neste mundo.
A evangelização no Hades também tem como finalidade pregar aos ímpios mortos para dar-lhes uma outra oportunidade de salvação. A doutrina da segunda oportunidade é bastante comum em círculos arminianos. Essas idéias baseiam-se numa interpretação equivocada de 1 Pedro 3.18-20. Eles afirmam que Jesus Cristo foi e pregou o evangelho de salvação aos espíritos em prisão no Hades.
A grande dificuldade da primeira idéia acima é que os santos do Antigo Testamento já haviam crido no Messias e, por isso, estavam justificados (Rm 4.3; Gl 3.6-9), o que torna desnecessária essa evangelização.
F. Visão da Tradição Reformada.
Na teologia reformada, a expressão “desceu ao Hades” é muitas vezes omitida inteiramente do Credo dos Apóstolos. Quando, todavia, a expressão aparece, ela substitui “sepultado,” sendo a palavra Hades entendida como uma referência ao “sheol,” 43 a região dos mortos, ou como uma referência ao estado de morte. 44 Outras vezes, como pensa Calvino, o Hades significa o sofrimento e morte de Jesus como expressão do recebimento da justiça divina.
Calvino sustentava que a descida ao Hades foi a experiência das dores do inferno na alma de Jesus, enquanto o seu corpo ainda estava pendurado na cruz, especialmente a experiência da ira divina contra o pecado que ele suportou no lugar dos seres humanos, que se evidencia numa dor espiritual resultante do abandono de Deus. Ali na cruz, Cristo tomou sobre si as dores da punição que eram devidas a todo o seu povo. 45
Estas idéias de Calvino foram transmitidas a alguns segmentos da Igreja da Inglaterra, no período do rei Eduardo VI, através dos ensinos do bispo anglicano John Hooper, que assim comentou a cláusula descendit ad inferna do Credo Apostólico, por volta de 1549:
Eu creio também que enquanto ele estava sobre a dita cruz, morrendo e entregando o seu espírito a Deus seu Pai, ele desceu ao inferno; isto quer dizer que provou verdadeiramente e sentiu a grande aflição e peso da morte, e igualmente as dores e tormentos do inferno, o que quer dizer a grande ira de Deus e o seu severo julgamento sobre si, até ter sido totalmente esquecido por Deus... Este é simplesmente o meu entendimento de Cristo em sua descida ao inferno. 46
Toda a tradição reformada sustenta, em alguma medida, o que foi dito acima, com algumas pequenas variações, mas sem qualquer prejuízo do entendimento geral de que a descida de Cristo ao Hades deve ser entendida como algo que aconteceu enquanto ele estava sob a ira de Deus no Calvário ou, no máximo, quando foi sepultado.
III. ANÁLISE BÍBLICA DA “DESCIDA AO HADES” NAS PRINCIPAIS TRADIÇÕES DA REFORMA
Existe base bíblica para afirmar que Jesus Cristo experimentou o Hades — se por Hades entendemos a manifestação do juízo divino — mas não há fundamento bíblico para afirmar que ele desceu localmente ao Hades, após a sua morte e sepultamento. Todavia, é importante que façamos uma análise da interpretação bíblica das principais tradições da Reforma, a fim de que não ignoremos como pensam esses companheiros cristãos.
Dentre os vários textos utilizados pelas diversas correntes teológicas, o de 1 Pedro 3.18-20 é o mais usado e o mais abusado. Vejamos, portanto, a sua interpretação em algumas tradições teológicas.
A. Interpretação da Tradição Arminiana.
Na tradição arminiana não existe uma interpretação única do texto de 1 Pedro 3.20, mas várias que sustentam a doutrina do evangelho da segunda oportunidade. Obviamente, a questão da pregação do evangelho no Hades, dentro do arminianismo, é matéria pertinente à extensão da morte de Cristo, que sem dúvida atinge a todos os seres humanos sem exceção. Os defensores dessa concepção não conseguem aceitar que tantas pessoas tenham perecido sem salvação. Esse pensamento certamente norteia a idéia da pregação evangelística da segunda oportunidade no Hades.
Geralmente, para provar que a pregação no Hades foi de caráter evangelístico, os seus defensores tentam associar o texto de 1 Pedro 3.19 com o de 1 Pedro 4.6, já que o primeiro texto recebe objeção, pois é visto como sendo um texto que não fala de evangelização.
Portanto, a probabilidade de que o significado de khru/ssein (“pregar”) em 1 Pedro 3.19 tenha essa conexão deve ser considerada como irresistivelmente forte contra qualquer outro sentido que não o da pregação do evangelho. A probabilidade é fortalecida pelo uso do verbo eu)hggeli/sqh (“foi pregado o evangelho”) em 1 Pedro 4.6, entendendo que devemos considerar este verso como tendo íntima relação com 3.19. 47
Fica bastante difícil para os defensores do evangelho do Hades provarem a sua tese sem mencionar o texto de 1 Pedro 4.6, mas mesmo assim ela fica enfraquecida porque esse texto não favorece a ligação com 1 Pedro 3.19. Isso veremos mais tarde.
Uma das interpretações mais curiosas é aquela dada no comentário do arminiano De Wette:
Os antediluvianos não haviam tido nenhum redentor e nenhum guia para a vida do Espírito. Portanto, Deus devia (se é que podemos usar essa expressão) suprir-lhes essa deficiência e, assim, por fim, o Senhor ressuscitado lhes trouxe salvação no Hades. 48
O grande erro dessa interpretação é que a Escritura não lhe dá apoio e, além disso, Noé foi o pregador de Deus àquela geração antediluviana, como veremos adiante. Eles não ficaram sem testemunho de Deus. Portanto, não precisavam dessa pregação no Hades.
Outros arminianos admitem que o evangelho já havia sido pregado à geração de Noé, e que essa pregação foi rejeitada, mas não foi uma rejeição definitiva. Por isso, a descida de Jesus ao Hades, conforme o seu entendimento de 1 Pedro 3.20, teria o caráter de uma segunda oportunidade. Um escritor dessa linha de pensamento afirma que “muitos não foram endurecidos irrecuperavelmente.” 49 Outro deles ainda afirma: “Esses homens que Pedro pensa que haviam perecido no grande julgamento de Deus, parece que em seu destino terrível não tinham se endurecido irrevogavelmente contra Deus.” 50 A rejeição dos homens do passado não foi uma rejeição final do evangelho. “Não é possível que naquelas palavras ‘os quais nos outros tempos foram desobedientes’ possa haver uma sugestão de que essa sua desobediência não tenha sido um ‘pecado eterno,’ que... é o terrível destino daqueles que nunca têm perdão?” Essa interpretação é encontrada em um dos comentários bíblicos mais populares entre os pastores, The Pulpit Commentary. 51
Uma outra interpretação curiosa é a de que a pregação do evangelho no Hades foi dirigida àqueles que haviam se arrependido enquanto viveram aqui na terra, mas não tiveram tempo de confessar os seus pecados enquanto eram engolfados pelas águas do Dilúvio. Um desses defensores do evangelho do Hades, o bispo Horsley, tem dificuldade em crer que “os milhões que morreram no Dilúvio tenham morrido impenitentes,” e afirma ainda que “a proclamação benéfica do evangelho foi limitada àqueles que se arrependeram antes da morte.” 52 Esse tipo de pensamento baseia-se em mera e fantasiosa suposição. Portanto, o fundamento para esse evangelho do Hades são simples hipóteses. Veja-se a citação a seguir:
Certamente não há nada que nos proíba supor que os antediluvianos aqui referidos (embora tivessem sido, por muito tempo, desobedientes e tivessem resistido à luta do Espírito de Deus mediante a pregação de Noé, enquanto a Arca estava sendo preparada) foram levados ao arrependimento e buscaram misericórdia, quando o dilúvio realmente veio. 53
Não há qualquer fundamento bíblico para essa idéia. Ela reflete uma pura especulação, certamente governada por pressupostos arminianos sobre a extensão da expiação.
Outro defensor do evangelho do Hades afirma que a pregação no Hades é um ministério que Deus confiou a Paulo e a outros apóstolos, com base numa análise falaciosa do texto de 2 Timóteo 1.12, que diz “estou bem certo de que ele é poderoso para guardar o meu depósito até aquele dia.” Segundo essa idéia, Paulo está no Hades, como os outros apóstolos, exercendo o seu ministério evangelístico, esperando receber o prêmio dessa tarefa no dia final.
O gérmen desse pensamento encontra-se nas idéias de Clemente de Alexandria, “que assevera como ensino direto das Escrituras que nosso Senhor pregou o evangelho aos mortos, mas pensa que as almas dos apóstolos devem ter assumido a mesma tarefa quando eles morreram.” 54 Luckock também endossa a afirmação acima. Ele diz que “os apóstolos, seguindo o exemplo de nosso Senhor, pregaram o evangelho àqueles que estavam no Hades.” 55 Engelder diz que até mesmo os seguidores de Edward Irving56 creram nisso, isto é, “que os apóstolos que morreram continuam a obra da pregação que Cristo começou em sua descida ao Hades.”57 Isto significa que a pregação do evangelho ainda continua a existir no Hades.
Ziethe, um dos defensores dessa posição, diz o seguinte:
Cremos que aquela grande obra de salvação, que o Filho de Deus começou com sua descida ao inferno, será levava a efeito continuamente até o fim dos tempos. Cremos que, no tempo presente, o evangelho também é pregado aos espíritos em prisão, a fim de que eles possam decidir a favor ou contra Cristo, para a sua salvação ou sua condenação. 58
Dificilmente encontraremos capacidade tão imaginativa para justificar o evangelho da segunda oportunidade no Hades. Em nome dos pressupostos arminianos, praticam-se grandes excentricidades exegéticas. É possível que ainda hoje vejamos alguns pregadores se aventurarem a afirmar que desceram aos infernos para pregar aos mortos. Não é de se espantar que ouçamos tais desvios teológicos em nome do amor às almas perdidas, sem levar em conta o ensino genuíno das Escrituras.
Ora, as excentricidades não param por aí. Não somente os apóstolos, mas os santos em geral também são considerados como pregadores dos infernos. O tão celebrado Pulpit Commentary, comentando o texto de Pedro, afirma: “Os santos que partiram espalham as alegres novas do evangelho entre os reinos dos mortos” (p. 145). De maneira convicta, mas equivocada, diz Luckock:
Nós exerceremos na outra vida, no mundo dos espíritos, sob condições espirituais, ministérios especiais e graças peculiares que marcaram nosso trabalho e vida neste mundo terreno... Os espíritos dos justos estão lá, e podemos muito bem imaginar os seus labores em favor dos outros, trazendo-lhes o conhecimento de Deus. 59
Essas idéias também são puramente especulativas e altamente imaginosas. Essa imaginação vai ao ponto de tentar entender o plano de Deus ao retirar as vidas jovens deste mundo. Veja-se o que J. Paterson-Smith diz em seu livro The Gospel of the Hereafter:
Pense como ele (o evangelho do Hades) ajuda nas perplexidades a respeito de Deus quando retira desta vida os jovens e as pessoas úteis. Eu disse a um homem que perguntou “Por que Deus tira um vida nobre como essa e deixa tantas vidas tolas e inúteis neste mundo?” que talvez Deus não quisesse somente as pessoas inúteis e tolas... Os eleitos de Deus na vida futura são ainda eleitos de Deus para o serviço em favor dos outros. 60
A morte prematura desses jovens é considerada como o início de um novo ministério no além túmulo. Ainda lá, para esses defensores do evangelho do Hades, é maravilhoso ver as pessoas evangelizando!
Essas pessoas revelam o desejo de querer ver o mundo dos espíritos sendo salvo, na sua totalidade, pela pregação da segunda oportunidade. Perguntamos: Até quando as almas dos apóstolos e dos crentes em geral permanecerão no Hades esperando que sejam recebidas no céu? Certamente esse ensino não passa de um romantismo teológico, destituído de qualquer fundamento escriturístico.
B. Textos Usados pelos Defensores do Evangelho do Hades.
Além dos textos de 1 Pedro 3.18-20 e 4.6, outros textos são usados pelos defensores do evangelho do Hades.
1 João 3.8 – “Aquele que pratica o pecado procede do diabo, porque o diabo vive pecando desde o princípio. Para isto se manifestou o Filho de Deus, para destruir as obras do diabo.”
Na visão dos defensores do evangelho do Hades, é algo extremamente pernicioso pensar que a grande maioria dos pecadores ficou perdida, pois isso indicaria a derrota e não a vitória de Jesus Cristo. Um de seus proponentes disse: “Certamente se 8/9 dos homens e mulheres nascidos neste mundo perecem eternamente, então Satanás terá triunfado; Cristo terá fracassado em destruir as suas obras.”61 Jesus veio para destruir as obras do diabo, inclusive vencendo a oposição dos homens no inferno. Cristo foi aos infernos inclusive para buscar os perdidos que lá estavam. Se ele veio destruir as obras do diabo, então é necessário admitir que ele esteve no inferno para aniquilar as obras do diabo naquele lugar.
Essa é uma espécie de universalismo disfarçado de amor pelas almas perdidas, com o grave erro de se crer que o inferno é uma criação do diabo e um lugar das atividades atormentadoras do mesmo.
Mateus 5.26 – “Em verdade te digo que não sairás dali, enquanto não pagares o último centavo.”
O comentarista F. W. Farrar, pressupondo o evangelho do Hades, diz:
Se o destino daqueles pecadores (1 Pe 3.19; 4.6) não é irrevogavelmente fixado pela morte, então deve ficar claro e óbvio ao mais simples entendimento que nem necessariamente é o nosso ... Que os prisioneiros ali podem ser “prisioneiros da esperança,” decorre de Mt 5.26, onde a mesma palavra fulakh/n (“prisão”- v. 25) é usada. 62
A esperança dos prisioneiros do Hades está no fato de o evangelho ser ali pregado. Mas a idéia de a pessoa ter que ser libertada gratuitamente pelo evangelho, quando tem que pagar até o último centavo, é absurda e contraditória. Se é o evangelho da graça, não há lugar para um pagamento feito pelo próprio homem. É impossível saldar qualquer débito no inferno. Quando objetado sobre esse assunto, Farrar responde com a Escritura: “O que é impossível para os homens, é possível para Deus (Mt 19.26).” Esse texto é uma grande saída, mas está citado totalmente fora de contexto. Não há qualquer autorização para esse tipo de interpretação. É impressionante que tal interpretação tenha sido dada por alguém que escreveu tanto sobre hermenêutica. Ele próprio não aplicou no seu comentário a boa hermenêutica tão propalada em sua obra. 63
Mateus 12.31-32 – “Por isso vos declaro: Todo pecado e blasfêmia serão perdoados aos homens; mas a blasfêmia contra o Espírito não será perdoada. Se alguém proferir alguma palavra contra o Filho do homem ser-lhe-á isso perdoado; mas se alguém falar contra o Espírito Santo, não lhe será isso perdoado, nem neste mundo nem no porvir.”
A sentença em itálico parece indicar para alguns defensores do evangelho do Hades que há uma possibilidade de perdão de pecados no inferno, exceto para o pecado da blasfêmia. Obviamente, os seus pressupostos arminianos devem conduzir a essa conclusão. Muitos intérpretes desatentos ao ensino geral das Escrituras poderão ter a mesma inclinação. Contudo, o texto está dizendo que o pecado contra o Espírito Santo especificamente não será perdoado em hipótese alguma, mesmo na eternidade (não no estado intermediário, no Hades). É a impossibilidade do perdão desse pecado que está explícita, não o perdão dos outros pecados no Hades, implicitamente.
Mateus 11.20-23 – “Passou, então, Jesus a increpar as cidades nas quais ele operara numerosos milagres, pelo fato de não se terem arrependido. Ai de ti, Corazim! Ai de ti, Betsaida! Porque se em Tiro e em Sidom se tivessem operado os milagres que em vós se fizeram, há muito que elas se teriam arrependido com pano de saco e cinza. E contudo vos digo: No dia do juízo haverá menos rigor para Tiro e Sidom, do que para vós outros. Tu, Cafarnaum, elevar-te-ás, porventura, até o céu? Descerás até ao inferno; porque se em Sodoma se tivessem operado os milagres que em ti se fizeram, teria ela permanecido até ao dia de hoje.”
Esta passagem é clássica para os defensores do evangelho do Hades. Para estes, ela indica que haverá a possibilidade, para aqueles que não tiveram a oportunidade de ouvir o evangelho neste mundo, de o ouvirem no outro mundo. Comentando essa passagem, Traub
mostra que entre a população pagã de Tiro e Sidom, e a de Sodoma, houve aqueles que, se a salvação de Cristo se lhes tivesse sido anunciada, teriam aceito a salvação pela fé. Estas palavras de Jesus Cristo podem ser aplicadas de um modo genérico. Elas provam que, entre aqueles a quem o Evangelho não alcançou nesta vida, há alguns que o teriam aceito caso lhes tivesse sido pregado. Segue-se que a pregação que não os alcançou nesta vida, de algum modo lhes será suprida posteriormente, na vida além. 64
Trata-se de um raciocínio de certa forma lógico, mas destituído do fundamento geral das Escrituras, porque entra simplesmente no terreno das hipóteses, que não pode e não deve ser levado em conta. O que o texto diz não é que tais pessoas terão a oportunidade de salvação no Hades, mas que receberão menor rigor no dia do julgamento. Com menor rigor a punição virá sobre eles, mas não a salvação.
Em resumo, chamei essas idéias de arminianas, não porque todos os arminianos as possuam, mas porque elas são próprias daqueles que ensinam uma espécie de universalismo de redenção e uma universalidade da decisão de Deus de salvar pecadores. Isso é próprio de arminianos que, em nome do amor pelos pecadores, distorcem algumas passagens da Escritura para mostrar que haverá oportunidade de salvação até no Hades. Por essa razão, todos os defensores do evangelho do Hades sempre citam as passagens bíblicas usadas pelos arminianos para mostrarem o propósito universal da salvação de Deus. Afinal de contas, Farrar diz:
Esta minha crença (de que Aquele que é Senhor de ambos, vivos e mortos, pode salvar almas pecaminosas mesmo após a morte do corpo) é fundada, não como tem sido afirmado, nos dois textos de Pedro, mas no que me parece ser o teor geral da totalidade das Escrituras, como uma revelação do amor de Deus em Cristo... É, portanto, uma doutrina que não somente se harmoniza melhor com a crença instintiva do homem sobre a justiça e misericórdia de Deus, mas também é muito mais escriturística e muito mais católica do que outras... 65
Aí está! Farrar, mesmo afirmando o contrário, invalida as Escrituras pelos seus pressupostos (que ele chama de “escriturísticos”) de um amor salvador de Deus que teria caráter absolutamente universal. É exatamente isto que muitos arminianos, propositadamente ou não, costumam fazer.
C. Interpretação da Tradição Luterana.
Para os luteranos, o texto de 1 Pedro 3.18-20 “é a passagem mais clara do Novo Testamento sobre a descida ao inferno.” 66 Vamos analisar apenas algumas expressões-chave em que a teologia luterana se distingue das outras.
Verso 18 – observe a expressão “vivificado em espírito.” A exegese feita por alguns luteranos indica que Jesus Cristo, quando morreu, e antes de ser ressuscitado, teve o seu espírito restituído ao seu corpo e, com a totalidade da sua natureza humana, foi ao inferno, o que é altamente estranho. Nesse caso, a idéia de morte fica totalmente prejudicada, pois morte é separação. Se a pessoa total de Jesus Cristo foi ao Hades, então a morte deixa de existir em Cristo.
Tratando da expressão “vivificado em espírito” (v. 18) 67 — que é diferente da ressurreição para os luteranos —, Scharlemann diz: “Quando nosso Senhor morreu na cruz, lemos que ele entregou o seu espírito nas mãos do Pai (Lc 23.46). O dativo de referência em nosso texto poderia, entretanto, sugerir que Jesus foi trazido à vida no sentido de que o seu espírito retornou ao seu corpo.” 68
A base dessa interpretação é apoiada curiosamente pelo fato de o retorno da filha de Jairo à vida ser descrito em termos de seu espírito estar retornando ao seu corpo (Lc 8.55). 69 Portanto, “o espírito” mencionado no verso é o da natureza humana de Jesus Cristo, que estava com o Pai no período entre a morte e a ressurreição, e veio a juntar-se ao corpo novamente, a fim de que o Cristo total fosse ao inferno, mas sem haver ressurreição.
Verso 19 – vimos que, para Scharlemann, a “vivificação” é a situação em que o espírito de Cristo voltou ao seu corpo entre a morte e a ressurreição. Nesse processo, particularmente quando Cristo estava sendo trazido à vida (“vivificação”), no momento antes de manifestar-se como o Senhor ressuscitado, ele foi e fez a proclamação aos espíritos em prisão. Essa interpretação distingue, portanto, entre o ser trazido à vida e a ressurreição, e sugere que o Deus-homem em seu estado glorificado foi e fez a proclamação em prisão antes de apresentar-se a si mesmo na tumba aberta. 70
A citação acima mostra, portanto, que a descida ao Hades é o primeiro estágio da exaltação de Cristo, porque ele foi trazido à vida. O problema é definir o que vida significa aqui. Por causa dessa interpretação, é possível, para a teologia luterana, que o estado de exaltação comece com a proclamação de Cristo no inferno, pois aí ele já está vivificado.
1. QUAL É O CONTEÚDO DA PROCLAMAÇÃO?
Em si mesma, a palavra “pregou” não define o seu conteúdo, segundo o entendimento da teologia luterana. Certamente, a palavra nada tem a ver com evangelização. Dentro do conceito luterano, a proclamação não tem nada a ver com a segunda chance da pregação do evangelho feita no inferno. A argumentação para essa negativa é que há diferença entre khru/ssw (proclamar) e eu)anggeli/zomai (evangelizar). Quando Cristo quis falar de evangelização ele usou o segundo verbo, ou, quando usou khru/ssw, ele acrescentou que “pregou o evangelho” (Mc 1.14).
Também se diz que Cristo “foi” e pregou. Segundo o entendimento luterano, não é possível espiritualizar essa “ida” ao inferno, como costumam fazer os calvinistas, dizendo que “quando Cristo morreu na cruz, os efeitos de sua morte foram sentidos no reino dos mortos... Como não temos nenhum direito de espiritualizar a ascensão, assim há pouca justificação para retirar daqui o sentido mais importante do verbo ou ignorá-lo. Cristo “foi e pregou aos espíritos em prisão.” 71 Existe, portanto, a idéia de movimento de um local para outro, e não simplesmente a espiritualização da idéia.
2. A QUEM SE FEZ ESSA PROCLAMAÇÃO?
Essa pergunta tem a ver com os “espíritos em prisão.” Quem eram eles? As respostas não são absolutamente unânimes entre os luteranos.
Lutero, no seu comentário do livro de Oséias, na edição de 1545, refere-se ao texto de 1 Pedro 3.18, dizendo:
Aqui Pedro diz claramente que Cristo apareceu não somente aos pais e patriarcas mortos, a quem ele em sua ressurreição levantou consigo mesmo para a vida eterna, mas que ele pregou a alguns que, nos tempos de Noé, não creram, mas confiaram na paciência de Deus, isto é, esperaram que Deus não tratasse tão severamente toda a carne, a fim de que eles pudessem saber que seus pecados foram perdoados através do sacrifício de Cristo. 72
Portanto, a idéia de Lutero é que a pregação de Cristo visou confirmar a salvação daqueles que haviam vivido nos tempos antigos, confiaram na paciência de Deus e agora estavam em prisão no Hades. Em outras palavras, Deus salvou alguns que confiaram não na pregação de Deus, mas na sua paciência. A esses Jesus confirmou a sua redenção.
Obviamente, essa idéia de Lutero não é bem-vinda entre os luteranos de modo geral. Scharlemann diz que “seria difícil concordar com a última parte dessa afirmação, mas a primeira parte indica que nos últimos anos de sua vida Lutero viu o descensus à luz de 1 Pedro.” 73 Melanchton confirma que posteriormente Lutero mudou a sua posição nesse assunto. Ele ficou “disposto a pensar sobre a pregação de Cristo no Hades, referida em 1 Pedro, como tendo possivelmente efetuado também a salvação de pagãos mais nobres como Scipio e Fabius.” 74
A visão luterana oficial é a sustentada pelos seus símbolos de fé já citados, que assimilam o pensamento cristão do século IV, segundo o qual o descensus ocorreu para conquistar a morte e o inferno, sem contudo comprometer-se na matéria da libertação dos santos do Antigo Testamento. 75
Respondendo a pergunta acima, podemos dizer que, de acordo com o pensamento luterano, a proclamação de vitória é feita aos que no tempo de Noé recusaram-se a crer e agora estavam em prisão. O texto de Pedro “ensina claramente que Cristo desceu à região dos condenados, àqueles que deliberadamente rejeitaram a graça de Deus no tempo de Noé, a fim de fazer-lhes a proclamação.” 76
Mas qual é o sentido de fulakh/ (“prisão”)?
A resposta a essa pergunta define quem eram os “espíritos.” Os luteranos rejeitam a idéia de que o Hades é o lugar para onde vão todos os mortos, mas a “prisão” é o lugar onde ambos estão sob guarda, os anjos caídos e os espíritos dos incrédulos. “Prisão” para eles é mais ou menos sinônimo de “abismo” (Ap 9.1,2,11; 11.17; etc.), que é o lugar onde estão os espíritos dos demônios.
Em contraste com o conceito pagão e com o conceito pagão-cristão, o Hades, para os luteranos, é apenas o lugar para onde vão os espíritos caídos e os espíritos dos incrédulos, e não o lugar para onde vão todos os mortos, sejam eles crentes ou incrédulos. “Prisão” é o oposto de “seio de Abraão,” para a qual vão os santos após a sua morte, conforme Lucas 16.22-25.
Resumindo a interpretação luterana sobre o texto de 1 Pedro 3.18-20, podemos dizer que “Cristo, segundo o seu corpo glorificado, desceu ao inferno para lá fazer proclamação de si mesmo como o Messias. Esse foi o primeiro estágio de sua exaltação.” 77
D. Interpretação da Tradição Reformada.
O texto de 1 Pedro 3.18-20 deve ser interpretado à luz de outros textos da Escritura que ajudam a esclarecê-lo. O apelo dos teólogos reformados deve ser às informações bíblicas e não às informações do Credo Apostólico (com o acréscimo do descendit ad inferna). Estes são pontos fundamentais que não podem ser esquecidos.
Lembremo-nos de que a controvérsia sobre o Hades recrudesceu quando da inserção no Credo, por volta do sétimo século, da frase “descendit ad inferna” após a cláusula “crucificado, morto e sepultado.” Antes disso, pouca coisa havia na igreja sobre essa matéria. Portanto, o foco desse assunto deve ser o ensino geral das Escrituras, não a afirmação credal.
1. REJEIÇÃO DO CONCEITO CRISTÃO-PAGÃO DE HADES
A fé reformada, em sua constante busca de consistência bíblica e teológica, rejeita tanto a formulação pagã como a cristã-pagã a respeito do Hades, exemplificadas acima. Não há um lugar para onde vão todos os mortos igualmente, um lugar específico de espera até que chegue o dia da ressurreição. Não há dois compartimentos separados no mesmo Hades: um lugar para os bons e outro para os maus, como é ensinado em algumas teologias. A fé reformada crê inequivocamente que, quando morrem, os homens vão para lugares diferentes. Os ímpios que morrem sem o conhecimento salvador de Jesus Cristo vão para a condenação, o que a Escritura chama de inferno, aguardando o juízo final. Os que morrem no Senhor, isto é, os genuínos cristãos, vão estar com Cristo imediatamente, até o dia final. Por isso é que Paulo diz: “... prefiro morrer e estar com Cristo, o que é incomparavelmente melhor” (Fp 1.23). Não há como abrir mão dessas verdades.
2. INTERPRETAÇÃO DE 1 PEDRO 3.18-20
Esse é o texto crucial com o qual todas as correntes se defrontam. Já vimos algumas interpretações. Doravante, a análise será de acordo com o ensino geral das Escrituras, como entendem os pensadores de linha calvinista, também chamados de reformados.
a. Qual é o sentido de “carne” e “espírito vivificado”?
Neste texto, essas duas palavras não devem ser tidas como referências antitéticas à mesma natureza humana do Redentor, isto é, referindo-se ao corpo e à alma de Jesus Cristo, pois esse não é o propósito do texto. Há lugares em que esse tipo de interpretação é possível,78 mas não aqui. Neste texto, Pedro está contrastando dois estados diferentes de existência de nosso Redentor: um está na esfera da limitação em que viveu enquanto conosco, com respeito à sua natureza humana, no seu estado de humilhação; o outro é uma esfera de poder e de não-limitação, que ele teve antes de encarnar-se e que veio a possuir depois de exaltado.
Essa mesma idéia, com outras palavras, aparece em Romanos 1.3-4, onde Paulo contrasta as duas existências do Filho encarnado, chamando-as de existência “segundo a carne” (existência humana, vinda da descendência de Davi) e existência “segundo o espírito de santidade,” revelando o seu estado vitorioso de não-limitação. Em 1 Timóteo 3.16 esses dois estados de existência do Redentor também são apresentados: “manifestado na carne e justificado em espírito.” O próprio Pedro apresenta a mesma idéia em 4.6, referindo-se aos mortos que, segundo os homens, haviam sido “julgados na carne” (terminaram a sua existência humana de fraqueza) e agora “viviam no espírito,” segundo Deus (uma existência em poder e vitória, sem as limitações da existência em fraqueza). 79 O texto de 1 Pedro 3.18 também dá essas duas conotações ao Redentor:
1. O estado de limitação e fraqueza do Filho de Deus:
A palavra aqui usada para “carne” é a mesma palavra grega (sa/rc) encontrada em outros lugares da Escritura, não significando, contudo, a parte material do homem ou a sua natureza pecaminosa, mas certamente a sua vida humana neste presente estado, a existência humana como ela é agora. Segundo o entendimento de Pedro, estar “morto na carne” refere-se simplesmente à humanidade de Cristo no estado de fraqueza (não de pecaminosidade) a que estava exposto. Quando ele morreu na carne, ele saiu desse estado de fraqueza e fragilidade. Neste sentido, portanto, é que devemos entender a expressão “morto na carne.” Todavia, não foi nesse estado que ele “pregou aos espíritos em prisão.”
2. O estado de não-limitação e força do Filho de Deus.
Às vezes, a palavra pneu=ma (“espírito”) usada no verso 18 tem sido traduzida com letra maiúscula, como uma referência ao Espírito Santo, mas parece-nos que não há porque interpretá-la assim. Se assim fosse, ela não teria nenhuma referência a Cristo, mas à terceira pessoa da Trindade, o Espírito. A nossa questão aqui é a respeito do Filho.
O pensamento do verso 18 não é que o corpo de Jesus morreu e que o seu espírito reviveu. Essas coisas não fazem sentido para Jesus Cristo e nem para qualquer outro ser humano comum, pois quem morre é o homem e quem ressuscita é o homem, não o corpo ou o espírito.
A expressão “vivificado em espírito,” que possui similares em outros textos da Escritura, diz respeito à vitória de Cristo na ressurreição, combinando-se com o que Paulo diz em 1 Timóteo 3.16. Todavia, neste texto específico de 1 Pedro 3.19, o espírito vivificado ou vivificador pode ter mais significado se o entendermos como a natureza divina do Redentor, antes de ele encarnar-se. Ele vivia nesse estado de poder e não-limitação que contrasta com o estado de fraqueza em que esteve nos dias de sua carne, e foi nesse tempo de não-limitação que ele foi e pregou aos espíritos em prisão, quando eles viviam no tempo de Noé.
b. Qual é o sentido de “no qual” (v. 19)?
Quando o texto de Pedro diz “vivificado em espírito, no qual também foi,” não está se referindo ao lugar aonde ele foi depois da morte, mas onde ele estava quando havia desobedientes nos tempos de Noé. Foi nesse espírito de vivificação que ele pregou através dos profetas nos tempos antigos, como veremos adiante.
A palavra “também” (do verso 19) desvia o assunto para esse mesmo estado de não-limitação de Cristo, que o levou a estar presente na vida dos pregadores no tempo da desobediência dos contemporâneos de Noé. Ele não poderia ter feito isso nos dias da sua carne, isto é, da sua existência terrena. Ele foi antes de ser o Verbo encarnado, quando de sua existência absolutamente ilimitada.
c. Para onde foi o Filho de Deus?
Cristo não foi literalmente ao inferno entre a morte e a ressurreição para pregar aos aprisionados que lá estavam, porque a Escritura mostra claramente o lugar para onde ele foi depois que morreu e foi sepultado. Certamente ele também não foi ao inferno após a sua ressurreição.
Quando Jesus Cristo foi “morto na carne,” ele foi estar com seu Pai, pois a Escritura afirma que, antes de expirar, ele disse: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23.46).
Quando Jesus Cristo foi “morto na carne,” ele foi para o céu, com seu Pai. No mesmo contexto da cruz, quando interpelado pelo ladrão à sua direita, que lhe suplicava “Lembra-te de mim, quando entrares no teu reino,” ele replicou: “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso” (Lc 23.43). Se formos buscar na própria Escritura o sentido de Paraíso, verificamos que é sinônimo de céu (o “terceiro céu,” o lugar em que Deus habita de modo especial). 80 Essa foi a idéia que Paulo deu a respeito de sua subida ao terceiro céu, que ele equipara ao paraíso (ver 2 Co 12.2-4). Portanto, o lugar em que Jesus Cristo permaneceu após a sua morte e até a ressurreição, não foi o Hades, mas o céu (ou o Paraíso), 81 o lugar de santa bem-aventurança e gozo!
Além disso, quando Jesus Cristo estava para morrer, ele disse que todo o seu sofrimento pela redenção do pecador estava no final. Jesus exclamou: “Está consumado” (Jo 19.30). Ele não teria que descer ao Hades para fazer qualquer pagamento, nem terminar sua obra de evangelização ou mesmo proclamar a sua vitória. Toda a obra de redenção e de proclamação pessoal do Redentor havia cessado.
d. Quando ele pregou?
A preocupação do texto de 1 Pedro 3.18-20 não é o que Cristo fez entre a morte e a ressurreição, mas o que ele fez no seu estado pré-encarnado (de poder e de não-limitação) no reino espiritual, no tempo de Noé. 82
O texto diz que ele, “vivificado em espírito,” isto é, em espírito poderoso (não em fraqueza e humilhação, como foi o caso da sua vida entre nós), “também foi e pregou aos espíritos em prisão.” Foi nesse mesmo espírito de poder ou de existência poderosa e ilimitada que ele pregou. A palavra “também” (do verso 19) define uma outra época, não após a morte e antes da ressurreição. Esse Redentor foi e pregou aos contemporâneos de Noé. Nesse espírito, isto é, nesse estado de poder é que ele também foi e pregou aos espíritos em prisão, que viviam escravizados no tempo em que Noé pregou. Isto está comprovado pelo fato de, nessa mesma carta, Pedro dizer que o espírito de Cristo, que é a sua natureza divina ilimitada e cheia de poder, estava presente nos pregadores, ou profetas, dos tempos antigos (1 Pe 1.11).
e. O que ele pregou?
Pode ser perfeitamente deduzido do contexto dessa Epístola de Pedro que Jesus Cristo pregou o evangelho aos contemporâneos de Noé. Espiritualmente, Cristo estava presente em Noé quando este era o “pregoeiro da justiça,” pois o mesmo Pedro menciona a salvação da qual os profetas falaram, “investigando atentamente qual a ocasião ou quais as circunstâncias oportunas, indicadas pelo Espírito de Cristo, que neles estava, ao dar de antemão testemunho sobre os sofrimentos de Cristo, e sobre as glórias que os seguiriam” (1 Pe 1.11). Esse verso indica que Pedro admite que Noé era um profeta, ou seja, um “pregador da justiça” (2 Pe 2.5), em quem e através de quem Jesus Cristo pregou. O conteúdo da mensagem não foi de condenação final. Portanto, podemos afirmar com certeza que o conteúdo da pregação do “espírito vivificado,” através de Noé, era de salvação do juízo de Deus que haveria de vir sobre o mundo ímpio. Noé certamente pregou aos seus contemporâneos para que se arrependessem e cressem na libertação divina através da arca, pela qual apenas oito pessoas foram salvas (v. 20). 83
f. Quem são os espíritos aprisionados?
A frase “espíritos em prisão” sozinha não define a matéria, mas quando a examinamos à luz das frases que vem a seguir, podemos ter uma noção clara do que Pedro está falando.
De acordo com o texto de 1 Pedro 3.18-20 e seu contexto, não há nenhuma possibilidade razoável de que a expressão “espíritos em prisão” não se refira aos desobedientes do tempo de Noé. O texto não fala de justos que foram para o Hades, nem de anjos aprisionados, como querem alguns, mas de pessoas que, noutro tempo, rejeitaram a pregação de Noé, e que eram consideradas “espíritos em prisão,” incapazes de fazerem quaisquer coisas por si mesmas para a sua própria salvação. Se cremos que Cristo pregou através do seu espírito ilimitado, e creio que o fez, as únicas pessoas mencionadas são essas: os contemporâneos de Noé. Ninguém mais. Obviamente que, nesse sentido, Cristo não foi ao inferno. Os espíritos em prisão são unicamente indivíduos que viveram nos tempos de Noé, que não foram salvos e que, por causa de seu cativeiro em cegueira espiritual, permaneceram incrédulos quanto à mensagem de Noé. Embora possamos crer que estavam em prisão (sob condenação) quando Pedro escreveu a carta, todavia, já eram prisioneiros de sua cegueira espiritual quando a mensagem de Noé lhes chegou aos ouvidos, porque eram escravos da desobediência. Foi a esses que Cristo pregou através de Noé.
Portanto, a passagem de 1 Pedro 3.18-20 não fala de uma viagem de final-de-semana de Jesus Cristo ao inferno, mas refere-se a uma pregação feita pelo espírito de Cristo, que é o espírito vivificado, através de Noé (1 Pe 1.11), aos seus contemporâneos (2 Pe 2.5), que eram homens desobedientes e, portanto, aprisionados à sua natureza pecaminosa. Além disso, eles agora estavam presos no inferno, sob condenação (pelo fato de terem sido desobedientes no tempo de Noé) quando Pedro escreveu essas palavras. 84
3. A DOUTRINA DO HADES NOS SÍMBOLOS DE FÉ REFORMADOS
a. O que a fé reformada rejeita.
A fé reformada rejeita qualquer noção de descida literal de Jesus ao Hades após a sua morte e antes da sua ressurreição. Embora estivesse sob “o estado de morte”85 até a sua ressurreição, ele não passou um fim-de-semana num lugar chamado Hades.
A fé reformada rejeita qualquer possibilidade da pregação de uma segunda oportunidade de salvação feita por Jesus, pelos apóstolos ou por outros santos quaisquer no Hades, depois de sua morte. A morte de todos os apóstolos e crentes é a abertura para a sua entrada no céu, é o descanso das suas fadigas desta vida, e não o trabalho penoso de evangelizar no inferno. De modo contrário, a morte de todos os ímpios é o selo do seu destino eterno. Não há mais qualquer oportunidade de redenção após a morte.
A fé reformada rejeita a idéia luterana de que Jesus Cristo teria descido ao Hades para proclamar a sua vitória (sendo esse o primeiro estágio de sua exaltação), porque de acordo com as Escrituras e os seus símbolos de fé, a exaltação de Jesus Cristo começa com a sua ressurreição, que é a sua vitória sobre a morte!
A fé reformada rejeita qualquer noção de que os crentes do Antigo Testamento estivessem cativos no Hades, e de que Jesus Cristo lá desceu para libertá-los, usando-se Efésios 4.8-9 como texto-prova para justificar tal posição. A Escritura ensina que os crentes do Antigo Testamento não foram para o Hades após a sua morte, mas foram estar com Deus (Sl 73.23-24), como é também o ensino do Novo Testamento. As Escrituras afirmam que aqueles que morrem têm os seus corpos sepultados e seus espíritos voltam para Deus, que os deu (Ec 12.6-7). Elas também afirmam que Elias, Enoque e Moisés estão no céu com Deus, e não no Hades (Gn 5.24; 2 Rs 2.11; Lc 9.29-32).
A fé reformada rejeita que Satanás possuía as “chaves” da morte, do inferno e da sepultura, e que Jesus desceu ao Hades para tomá-las dele. Não há qualquer sugestão nas Escrituras de que essas coisas pertençam a Satanás. Falando sobre Jesus Cristo (conforme a interpretação joanina no Apocalipse), Isaías diz que a chave do senhorio do universo pertence a Jesus Cristo (Is 22.21-22 e Ap 3.7). Há somente outros dois versos da Escritura que mencionam as chaves, e Satanás nunca é associado a elas. O primeiro texto diz que a “chave do reino dos céus” foi entregue por Jesus aos apóstolos (Mt 16.19) e o segundo afirma que as chaves da “morte e do inferno” pertencem a Jesus Cristo (Ap 1.18). Somente o Senhor possui as chaves da morte e do inferno. Ninguém mais!
b. O que a fé reformada aceita
A fé reformada também aceita o Credo Apostólico como expressão da fé genuína dos pais da igreja. Contudo, o entendimento dos reformados com respeito ao Hades é diferente do de muitos cristãos evangélicos. Os símbolos de fé reformados explicam o sentido da expressão “desceu ao Hades,” inserida no Credo de Aquiléia no quarto século, como uma expressão substitutiva para descrever o que aconteceu a Jesus Cristo, como nosso representante, na cruz.
Observe-se a resposta à pergunta 44 do Catecismo de Heidelberg:
P. Por que se acrescentou: “Ele desceu ao Hades”?
R. Para que em minhas maiores tribulações eu possa estar seguro de que Cristo, meu Senhor, através de indizíveis terrores, dores e angústias que sofreu em sua alma na cruz e antes dela, redimiu-me da angústia e dos tormentos do inferno.
Veja-se a resposta do Catecismo Maior de Westminster à pergunta 50:
P. Em que consistiu a humilhação de Cristo depois da sua morte?
R. A humilhação de Cristo, depois da sua morte, consistiu em ser ele sepultado, em continuar no estado dos mortos e sob o poder da morte até ao terceiro dia, o que, aliás, tem sido expresso nestas palavras: Ele desceu ao inferno (Hades).
De maneira diferente do Catecismo de Heidelberg, o Catecismo de Westminster interpreta o Hades como sendo sepultura ou, ainda melhor, o estado de morte.
Contudo, entre os escritores reformados prevalece a idéia dos símbolos combinados. A significação de Hades, no Credo Apostólico, é a de que Jesus Cristo experimentou a condenação divina que se evidencia na humilhação de morrer e ser sepultado, ficando sob o poder da morte, mas tais escritores incluem, sobretudo, os seus sofrimentos agonizantes antes e durante o tempo que passou na cruz. Experimentar o inferno é experimentar o doloroso abandono da presença confortadora de Deus. Foi exatamente isso que Cristo experimentou. A ira de Deus desceu sobre o Filho encarnado e se manifestou não somente nas dores infernais do seu corpo, mas também nas angústias infernais que se apoderaram de sua alma. Portanto, Jesus nunca desceu ao Hades literal e espacialmente, mas experimentou intensivamente todas as coisas que o Hades representa, descritas acima. Ele experimentou o inferno antes da morte e na própria morte, mas nunca depois dela, numa viagem de final-de-semana a um lugar chamado Hades.
Por causa da experiência infernal que Cristo teve em face do juízo divino, aqueles por quem ele morreu são libertos para sempre da condenação do inferno. É esse o sentido que os reformados dão para a frase descendit ad inferna. Nessa obra libertadora de Jesus Cristo nos regozijamos e por ela a Deus bendizemos!
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* O autor é ministro presbiteriano e professor. Obteve o seu doutorado (Th.D.) na área de Teologia Sistemática no Concordia Theological Seminary, em Saint Louis, Missouri, Estados Unidos.
1 Essa tradução opcional está no rodapé do texto de Almeida, Versão Revista e Atualizada, e tem o apoio de alguns estudiosos recentes, como é o caso de Wayne Grudem em seu artigo “He Did not Descend Into Hell: A Plea for Following Scripture Instead of the Apostle’s Creed,” Journal of the Evangelical Theological Society 34/1 (Março 1991), 108.
2 Herman Witsius, Dissertations on The Apostle’s Creed, vol. II, reimpressão (Presbyterian and Reformed Publishing Company, 1993), 140.
3 Citado por W. G. T. Shedd, Dogmatic Theology, vol. II (Nova York: Charles Scribner’s Sons, 1889), 604.
4 Desde o século IX, o Credo Atanasiano tem sido atribuído a Atanásio (297-373), o bispo de Alexandria e o principal defensor da divindade de Cristo e da doutrina ortodoxa da trindade. Todavia, desde o século XVII, abandonou-se entre católicos e protestantes a idéia de Atanásio como o seu autor. A origem desse credo remonta à igreja latina da escola de Agostinho, provavelmente na Gália ou norte da África (ver Philip Schaff, The Creeds of Christendom [Grand Rapids: Baker:1990], Vol. I, 35-36).
5 Witsius, Dissertations, 141.
6 J. N. D. Kelly, Early Christian Creeds (Essex, England: Longman House, 1986), 379.
7 Ver ibid., 379.
8 Ibid., 380.
9 Neste artigo, não examino as interpretações recentes de grupos neo-pentecostais ou carismáticos. Se o leitor quiser alguma informação a respeito, pode consultar o capítulo “Redemption in Hell” do livro de Hank Hanegraaff Christianity in Crisis (Eugene, Oregon: Harvest House Publishers, 1993), 163-167.
10 Richard A. Muller, Dictionary of Latin and Greek Theological Terms (Grand Rapids: Baker, 1986), 178, 253.
11 Dewey D. Wallace, Jr. “Puritan and Anglican: The Interpretation of Christ’s Descent Into Hell in Elizabethan Theology,” Archiv Für Reformationsgeschichte 69 (1978), 250-51.
12 Wallace, Jr., “Puritan and Anglican,” 256.
13 John Ayre, ed., The Catechism of Thomas Becon...With Other Pieces by Him in the Reign of King Edward the Sixth, Parker Society nº 3 (Cambridge: Cambridge University Press, 1844), 33.
14 Ibid., 258, nota 48.
15 Ibid. Ver John Ayre, ed., Prayers and Other Pieces of Thomas Becon, Parker Society nº 4 (Cambridge: Cambridge University Press, 1844), 139.
16 Wallace, Jr., “Puritan and Anglican,” 257.
17 Eram os partidários da Reforma que desejavam uma mudança mais drástica com respeito aos costumes e práticas da religião católica do que havia acontecido nos termos de Lutero, Zuínglio e Calvino.
18 Um diplomata aristocrático alemão e teólogo leigo que teve conflitos teológicos com Lutero, Calvino e Zuínglio a respeito de disciplina eclesiástica, cristologia e Santa Ceia (ver J. D. Douglas, ed., The New International Dictionary of the Christian Church [Grand Rapids: Zondervan, 1978], 888).
19 Kaspar Schwenckfeld, Corpus Schwenckfeldianorum, vol. 10 (Leipzig, 1907-1961), 364 (citado por Jerome Friedman, “Christ’s Descent into Hell and Redemption Through Evil: A Radical Reformation Perspective,” Archiv für Reformationsgeschichte 76 [1985], 220).
20 Ibid. (citado por Jerome Friedman. “Christ’s Descent Into Hell,” 220).
21 Friedman, “Christ’s Descent Into Hell,” 222.
22 Ibid., 222.
23 Ibid.
24 “O descensus foi realizado por um Jesus humano, antes que por um ser divino, e foi dirigido... como um exemplo para toda a raça humana, para despertar a devoção a Cristo e como condição para se ressuscitar com Jesus” (Ibid., 222).
25 Brilhante médico espanhol. Interessado em teologia, escreveu sobre a Trindade e sobre cristologia. Foi acusado de heresia por católicos e protestantes, sendo morto em Genebra em 27-10-1553, após ter sido condenado pelo Conselho da cidade.
26 Friedman, “Christ’s Descent Into Hell,” 222.
27 “O corpo de Cristo é em si mesmo o corpo da divindade, e sua carne é divina, a carne de Deus, o sangue de Deus. A carne de Cristo foi gerada da substância celestial de Deus” (Ibid., 222-23).
28 Ibid., 226.
29 Ibid., ver pp. 227-229.
30 Essas informações sobre Serveto são encontradas em sua obra Christianismi Restitutio (Vienne, 1553), 621-622 (citada por Friedman, Ibid., 227-228).
31 Friedman, “Christ’s Descent Into Hell,” 228.
32 Ibid., 228.
33 Ibid.
34 Ibid., 229.
35 The Book of Concord, ed. Theodore G. Tappert (Filadélfia: Fortress Press, 1988), 492.2.
36 “Algumas vezes ele fala de maneira muito livre e em termos mitológicos de Cristo indo ao inferno, dominando e despojando Satanás; mas ele próprio reconhecia o caráter metafórico de tal linguagem e em outro lugar discutiu a descida como sendo primariamente uma experiência espiritual mais interior da alma de Cristo (sem negar, contudo, que houve uma descida literal).” (Wallace, Jr., “Puritan and Anglican,” 252). Ver também Friedrich Loofs, “Descent to Hades,” Encyclopedia of Religion and Ethics, ed. James Hastings (Nova York: Charles Scribner’s, 1924), IV, 656-657.
37 Wallace, Jr., “Puritan and Anglican,” 252.
38 Ibid., 253.
39 The Book of Concord, 492.4.
40 Ibid., 610.2.
41 Em seu sermão no Castelo de Torgau, em 1533. Ver a “Fórmula de Concórdia,” no Livro de Concórdia, 610.1.
42 Citado por Gotthilf Doehler, “The Descent into Hell,” The Springfielder 39 (Junho 1975), 16.
43 Martin Bucer, o reformador de Estrasburgo, e Leo Jud, um colega de Zuínglio, disseram que o descensus significava que Cristo estava verdadeiramente morto, tendo descido à sepultura (Wallace, Jr., “Puritan and Anglican,” 253, 254 [nota 24]).
44 Isto foi sustentado por Jerônimo Zanchi, que trabalhou em Estrasburgo e Heidelberg (Ibid., 254, nota 25). Assim também afirma o Catecismo Maior de Westminster, pergunta 50.
45 João Calvino, Institutas, 2.16.8-12.
46 Later Writings of Bishop Hooper, Together with his Letters and Other Pieces, ed. Charles Nevinson, Parker Society nº 21 (Cambridge: Cambridge University Press, 1852), 30 ([citado por Wallace, Jr., “Puritan and Anglican,” 258]).
47 Citado por Theodore Engelder, “The Argument in Support of the Hades Gospel,” Concordia Theological Monthly 16 (1945), 380.
48 Citado por Engelder, Ibid., 382.
49 Edward H. Plumptre, The Spirits in Prison and Other Studies on the Life After Death (Londres: Isbister, 1898), 111, 114. Citado por Engelder, “Argument in Support of the Hades Gospel,” 382.
50 J. Paterson-Smith, The Gospel of the Hereafter (Nova York: Fleming H. Revell, 1910), 66.
51 The Pulpit Commentary, eds. H. D. M. Spence e Joseph S. Exell (Nova York: Funk & Wagnalls,1890), 135.
52 Ver Plumptre, The Spirits in Prison, 98 (citado por Engelder, “The Argument in Support of Hades Gospel,” 383, nota 5).
53 Luckock, The Intermediate State, 144 (citado por Engelder, 383, nota 5).
54 Informação do The Expositor’s Greek Testament, ed. W. Robertson Nicoll (Nova York: George H. Doran, 1897), 59.
55 Luckock, The Intermediate State, 101 (citado por Engelder, 385).
56 Edward Irving (1792-1834), um escocês, foi pregador assistente de Thomas Chalmers em Glasgow. Tornou-se profético e apocalíptico em sua pregação. Cria que a natureza humana de Jesus era pecadora, mas Cristo não pecou por causa da habitação do Espírito Santo. Por causa de suas idéias heterodoxas, foi privado de pregar pelo Presbitério de Annan. Cria que os dons sobrenaturais apostólicos haviam sido restaurados no seu tempo. Foi uma espécie de precursor do movimento carismático (ver New Dictionary of Theology, ed. Sinclair Ferguson [Downers Grove, Illinois: Intervarsity Press, 1989], 342).
57 Popular Symbolica, 326 (citado por Engelder, 385-86).
58 W. Ziethe, Das Lamm Gottes, 729 (citado por Engelder, 385).
59 Luckock, The Intermediate State, 101, 186 (citado por Engelder, 386-87).
60 Paterson-Smith, The Gospel of the Hereafter, 153, 155.
61 Citado por Engelder, “Argument in Support of the Hades Gospel,” 388.
62 Citado por Robert F. Horton em sua obra Revelation and the Bible: An Attempt at Reconstruction, 2ª ed. (Nova York : Macmillan, 1893), 87.
63 F. W. Farrar é autor de um dos livros clássicos sobre a história da interpretação da Bíblia. Ver History of Interpretation, reimpressão (Grand Rapids: Baker, 1961).
64 Citado por Engelder, “Argument in Support of the Hades Gospel,” 389-90.
65 Ibid., 393-94.
66 Martin Scharlemann, “He Descended into Hell,” Concordia Theological Monthly 27 (1956), 84.
67 Na interpretação luterana, a palavra grega zwopoihqei\j (traduzida como “vivificado”) não é equivalente à ressurreição, mas “aponta para algo que foi feito a Jesus. Ela refere-se inconfundivelmente a um ato específico de Deus pelo qual o Senhor foi trazido à vida... Nem todos os eruditos concordam que essa ação deva ser entendida com referência à ressurreição no seu sentido estrito. Há aqueles que restringem a palavra nesse ponto à vivificação, que é distinta da ressurreição no sentido de que a ressurreição foi uma exibição pública do fato de ele ter voltado à vida. Em muitas passagens do Novo Testamento, esta distinção pode ser feita. Contudo, em Efésios 2.5-6 o apóstolo aponta para a diferença entre despertar e ressuscitar. Tal distinção nos conduziria a crer que nós poderíamos propriamente, com base no Novo Testamento, separar a vivificação da ressurreição para o propósito de cronologia e clarificação daquilo que aconteceu na manhã do dia de páscoa” (Ibid., 87-88).
68 Ibid., 88.
69 Ibid., 88. Contudo, essa interpretação dada por Scharlemann tropeça no fato de que o retornar à vida da filha de Jairo é igual à ressurreição, o que não aconteceu com Jesus Cristo.
70 Ibid., 89.
71 Ibid., 90.
72 Citado por John T. Mueller no Concordia Theological Monthly 18 (1947), 615.
73 Martin Scharlemann, “He Descended into Hell – An Interpretation of 1 Peter 3.18-20,” Concordia Theological Monthly 27 (1956), 91.
74 Ibid.
75 Ibid.
76 Ibid., 92.
77 Ibid., 93.
78 Como, por exemplo, em 2 Coríntios 7.1.
79 Uma interpretação alternativa seria entender a expressão “morto na carne” como uma referência à morte física e traduzir a expressão zwopoihqei£/j... pneu/mati por “vivificado pelo Espírito,” ao invés de “vivificado no espírito.” A construção gramatical é possível, visto que pneumati pode ser tanto locativo como instrumental. Assim, o pneumati aqui referido é o Espírito Santo, e a vivificação, uma referência à ressurreição de Cristo pelo Espírito Santo. E foi pelo Espírito Santo e através de Noé que o Cristo pré-encarnado pregou aos desobedientes nos dias daquele patriarca (1 Pe 1.11).
80 Esse é o mais alto dos céus, que equivale ao lugar da plena companhia divina, como era no paraíso original. Paulo, numa experiência ímpar, viu esse lugar glorioso da presença de Deus, para onde vão os remidos em Cristo Jesus (ver Charles Hodge, A Commentary on 1 & 2 Corinthians (Edimburgo: Banner of Truth, 1978), 658.
81 Ver At 3.21.
82 Ver Wayne Grudem, “He Did Not Descend Into Hell,” 110.
83 Ver o comentário de Wayne Grudem, 1 Peter, Tyndale New Testament Commentaries (Grand Rapids: Eerdmans, 1990), 160.
84 Para um tratamento mais amplo dessa matéria, ver o comentário de Wayne Grudem, I Peter, 203-239.
85 É importante observar que Pedro fala em seu discurso de Atos 2 que Jesus Cristo esteve no Hades, mas Hades aqui tem um sentido muito diferente. Citando o Salmo 16.8-11, referindo-se ao seu estado após a morte, Pedro coloca na boca de Redentor as seguintes palavras: “... porque não deixarás a minha alma na morte, nem permitirás que o teu Santo veja corrupção” (At 2.27). A palavra “morte” no grego é Hades. E Hades aqui significa estado de morte, não somente sepultura. Ela é a tradução do salmo onde o escritor usa a palavra hebraica equivalente, sheol. Durante esse estado de morte (Hades), isto é, durante o tempo em que o seu corpo ficou separado de sua alma, o corpo de Jesus estava na sepultura e sua alma estava com seu Pai no paraíso ou céu.
ENGLISH ABSTRACT
The author examines the concept of Descendit Ad Inferna in the major Christian traditions from three important perspectives: historical, theological and biblical. Campos exposes carefully the views of Catholic, Anglican, Lutheran, Anabaptist, Arminian, and Calvinist writers. Starting from a Reformed perspective, Campos attempts to show the fallacy of the concept that Christ went to Hades after his death, a concept that crept into some protestant traditions due to the insertion in the Apostolic Creed of the phrase descendit ad inferna. Campos deals exegetically with 1 Peter 3.18-20, the main proof-text used in those traditions. His main contention is that the biblical data only tell us that Christ died and was buried. There is no biblical and theological evidence that Christ went to Hades before his resurrection.
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