Pela Fé Que Foi Entregue aos Santos
Gilson Carlos de S. Santos
“...senti a necessidade de vos escrever, exortando-vos a pelejar pela fé que de uma vez para sempre foi entregue aos santos” (Jd 3).
Uma das palavras mais freqüentes na Bíblia é “fé”. Conceito chave, esta palavra descreve um ato que passa pela inteligência e pela vontade. Na Bíblia, fé significa confiança absoluta em tudo que Deus tem revelado; a confiança que possuímos no testemunho que Deus manifesta acerca de Si mesmo. Às vezes, esta palavra aparece para descrever o exercício da fé por parte do homem espiritual, a crença ativa, a dependência de Deus. Outras vezes, para descrever o objeto da fé, aquilo em que alguém crê, o sistema de princípios religiosos (como é o caso do cristianismo), o anúncio doutrinário na forma de um credo.
“Vigiai, estai firmes na fé, portai-vos varonilmente e fortalecei-vos...” (1 Co 16.13 - ARC).
“Se, na verdade, permanecerdes fundados e firmes na fé e não vos moverdes da esperança do evangelho que tendes ouvido, o qual foi pregado a toda criatura que há debaixo do céu, e do qual eu, Paulo, estou feito ministro” (Cl 1.23 - ARC).
“Amados, procurando eu escrever-vos com toda a diligência acerca da salvação comum, tive por necessidade escrever-vos e exortar-vos a batalhar pela fé que uma vez foi dada aos santos” (Jd 3 - ARC).
“E crescia a palavra de Deus, e em Jerusalém se multiplicava muito o número dos discípulos, e grande parte dos sacerdotes obedecia à fé” (At 6.7).
Há algumas perguntas que nos ajudam a avaliar nossa fé. Neste editorial propomos três perguntas através das quais podemos fazer uma radiografia dela. São perguntas importantes e reveladoras.
1. Em Que Você Crê?
O conteúdo da nossa fé é fundamental. Aquilo em que você crê constitui aquilo que você é. E só a verdade é digna de ser crida. Alguém já disse que “a piedade é filha da verdade, e precisa ser alimentada... não com outro leite que não seja o de sua mãe”. John Owen afirmou que “somente a verdade capacita a alma a dar glória a Deus”. Hoje em dia ouvimos expressões tais como: “Não importa o que você crê, conquanto seja sincero”; “Todos os caminhos levam a Deus”, etc. Ao que nos parece, esta será a religião do século 21. Isto, contudo, é uma grande falácia. Aquilo que você crê constitui o alicerce da sua vida. Aquele que crê mal não pode viver bem, pois não tem alicerces.
Nossa fé requer um conteúdo. Fé sem conteúdo não é a fé bíblica: é misticismo ou superstição. E o conteúdo sólido para alicerçarmos nossa vida tem de ser a verdade. Permaneça fiel às suas convicções, mas assegure-se de que elas são verdadeiras. Jesus disse: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8.32). Somente a verdade liberta e consola. Nossa liberdade consiste em sermos cativos da verdade. Um filósofo dinamarquês disse que, “para ser forte, preciso descobrir a verdade, pela qual eu possa viver e morrer”.
Aquilo que você crê constitui aquilo que você é.
Vivemos tempos em que as pessoas estão à procura de mestres que lhes agradem. Líderes e movimentos religiosos, inclusive no meio evangélico, têm, como premissa essencial de sua prática e base de sua agenda, o pensamento corrente, os conhecimentos da psicologia e as tendências culturais. Surgem doutrinas que agradam multidões e pregoeiros que mais se parecem com aqueles animadores de programas de auditório. Entretanto, a questão não é se uma doutrina é bela, atraente, impressionante ou popular, mas se é verdadeira. O bispo de Hipona escreveu: “Se você crê somente no que gosta do evangelho e rejeita o que não gosta, não é no evangelho que você crê, mas em si mesmo”. E o reformador Lutero adverte-nos: “qualquer ensinamento que não se enquadre nas Escrituras deve ser rejeitado, mesmo que faça chover milagres todos os dias”. No fim, a verdade triunfará. A verdade é sempre forte, não importa quão fraca pareça; e a falsidade é sempre fraca, não importa quão forte pareça.
Por nós Jesus orou. Ele pediu ao Pai: “Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade” (Jo 17.17).
2. Como Você Crê?
A forma e a intensidade da fé têm grande importância. A fé é algo que se desenvolve mediante o uso. Ela precisa ser desenvolvida. Assim, a fé pode aumentar e ser fortalecida. Há níveis variados de fé, pois há níveis variados de desenvolvimento da alma. Por isso, fazem sentido expressões bíblicas tais como: “Homens de pouca fé”; “Geração incrédula”; “Fé do tamanho de um grão de mostarda”; “Mulher, grande é a tua fé”; “Nem mesmo em Israel encontrei tamanha fé”. Dos pedidos que os discípulos fizeram ao Mestre Jesus Cristo, dois se destacam. O primeiro é “ensina-nos a orar”; e o segundo, “aumenta-nos a fé”.
Esta questão da forma e da intensidade da fé pode ser percebida de maneira bem nítida nas palavras de Jesus dirigidas a Tomé, no segundo domingo após a ressurreição. Como sabemos, Tomé esteve ausente na reunião do primeiro domingo (o que já constitui um ponto negativo) e não creu na notícia de que Jesus havia ressuscitado dentre os mortos. Após haver contemplado o Senhor, colocado o dedo nas feridas dos cravos em suas mãos e apalpado as chagas do seu lado, Tomé creu. E disse-lhe Jesus: “Porque me viste, creste? Bem-aventurados os que não viram e creram” (Jo 20.29).
De fato, a fé bíblica é a confiança que temos no testemunho que Deus manifesta acerca de Si mesmo. Ao crente basta a Palavra de Deus. Deus falou a Abraão, e este creu. Lamentavelmente, vivemos um tempo em que a geração incrédula e adúltera pede e busca sinais a fim de crer.
Escrevendo sobre questões relacionadas à esfera da liberdade cristã, o apóstolo Paulo disse aos romanos: “Mas aquele que tem dúvidas, se come está condenado, porque não come por fé; e tudo o que não é de fé é pecado” (Rm 14.23 - ARC). A nossa fraqueza nasce de nossa falta de convicções arraigadas. Precisamos de homens com fé inabalável na Palavra do Senhor, com coragem para tomar posição em sua proclamação e defesa e com disposição e tenacidade para assumir os custos de tal decisão. Afinal, uma bigorna não tem medo dos martelos, e, como alguém já disse, “razões fortes levam a decisões enérgicas”.
Walt Disney criou um personagem que ele entendeu representar bem o Brasil. Foi o Zé Carioca. Um papagaio que caracteriza o carioca típico dos morros da cidade do Rio. De fato, o papagaio é uma ave bem brasileira. A singularidade dessa ave é que, por via de regra, imita bem a voz humana. Todavia, é um mero repetidor do que ouve constantemente. Também, em religião, os “papagaios” proliferam em nosso país. Estes repetem idéias que têm ouvido desde o berço ou práticas e doutrinas da moda, sem jamais terem chegado a uma experiência pessoal com Deus. Quando Pilatos interpelou Jesus, com as palavras “És tu o rei dos judeus?”, Jesus respondeu ao governador, fazendo outra pergunta: “Dizes isso de ti mesmo, ou disseram-to outros de mim?” Ecoar o que se ouve, sem uma fixação pessoal, é tornar-se um papagaio.
Este é um sintoma alarmante de nossa época: muita gente “ecoando” um cristianismo que não passou da gravação, na memória, de algumas respostas do catecismo e alguns textos ou referências da Bíblia. Fé viva na Palavra e vivência com Deus nunca foram experimentadas por tais pessoas. E, quando chegam as horas difíceis, em que a vida espiritual tem de passar por uma prova de fogo, a “religião de segunda mão” não oferece o apoio de que precisa o “religioso”, que entra em pane e atola. Necessitamos de uma geração de homens “religiosos de primeira mão”, que falem ou cantem o que afirma o Salmo 23: “O Senhor é o meu pastor...” Como você crê? Como andam as suas convicções?
O conhecimento da verdade deve nos levar convicção da verdade. Jesus lançou a seguinte pergunta ao povo, acerca de João Batista: “Que fostes ver no deserto? Uma cana agitado pelo vento? ... Mas, então que fostes ver? Um profeta? Sim, vos digo eu, e muito mais do que profeta” (Mt 11.7-9 - ARC). É terrível quando ouvimos a respeito de alguém: “Ele nunca tem opinião própria; costuma adotar a que estiver em voga”. Eis aí um caniço agitado pelo vento. O profeta do Senhor não é aquele que se orienta pelo catavento da opinião pública, mas pela bússola da convicção bíblica. O nosso mundo é rico em ilusões, e, por vezes, nos deixamos iludir por ele. Somos tentados a preferir o caminho fácil e seguir o curso da multidão. Porém, aqueles que têm por filosofia de vida acompanhar as multidões freqüentemente se perdem no meio delas. Spurgeon um dia concluiu sobre a insanidade de alguém se guiar pela popularidade e disse: “Já faz muito tempo que parei de contar cabeças. Geralmente a verdade está com a minoria neste mundo mau”.
O mundo carece de homens que crêem naquilo que pregam. Nos tempos da bastilha francesa, Mirabeu falou de Robespiere, quando este fazia um discurso: “Este homem vai longe; ele acredita naquilo que diz!” É lamentável dizer, mas há muitos de nossos pregadores e teólogos que simplesmente não crêem naquilo que pregam. Se crêem, a forma como pregam parece negar-lhes a eficácia de sua fé.
3. O Que Você Faz Com O Que Você Crê?
O que fazemos com a fé é muito importante. Se algo é digno de ser crido, é digno de ser vivido. De fato, a fé bíblica implica em obediência. A fé bíblica traduz-se em discipulado. Não crê aquele que não vive consoante à sua crença. “Assim, também a fé, se não tiver obras, por si só está morta” (Tg 2.17). Um pressuposto da pregação da Palavra de Deus é que o propósito subjacente a toda doutrina é garantir a ação moral. Aprendemos por simples verificação semântica que teologia é conhecimento de Deus. Sua teologia consiste naquilo que você é quando pára de falar e começa a agir. Deus quando nos instrui a mente, Ele o faz para transformar a vida. Aliás, este é o alvo do ensino, e a lei do processo de aprendizagem estabelece que o aluno deve reproduzir, em si próprio, a verdade aprendida. E vivendo a verdade, nossas próprias vidas se tornam verdadeiras. Nós nos tornamos o que devemos ser.
Precisamos de homens com fé inabalável
na Palavra do Senhor, com coragem para
tomar posição em sua proclamação e
defesa, com disposição e tenacidade
para assumir os custos de tal decisão.
Uma fé digna de ser crida é digna de ser proclamada. Novamente recorro a Spurgeon, que disse: “Os homens, para serem verdadeiramente ganhos, precisam ser ganhos pela verdade”. Hoje a teologia é vista como reflexões dos ambientes eruditos, aprisionada nos recintos acadêmicos dos seminários. Faz-se uma grande dissociação entre o conteúdo dos compêndios empoeirados das bibliotecas dos teólogos e a ação pastoral na igreja e a vivência comum do crente com Deus. Não tenhamos o mínimo interesse numa teologia que não promova o ardor por Deus; não tenhamos qualquer interesse por uma teologia que não evangelize e uma fé que não seja missionária.
A verdade precisa ser proclamada, não importa como seja recebida. E deve ser proclamada, antes de tudo, porque é a Verdade de Deus. Proclamar a Palavra glorifica o seu santo Nome. A pregação é sem dúvida um bem eterno. Essa foi a conclusão dos apóstolos quando elegeram “os sete”. O bem que se faz aos homens é passageiro; as verdades que lhes deixamos são eternas.
Uma fé digna de ser crida é também digna de que batalhemos por ela. O melhor método para a erradicação do erro ainda é publicar e praticar a verdade. Precisamos tornar clara nossa posição, com palavras e obras, em favor da verdade e contra as falsas doutrinas. Quase sempre, é no vácuo deixado pela negligência e descaso em proclamarmos “todo o conselho de Deus” que proliferam as seitas e heresias. Quando a verdade silencia, as opiniões falsas parecem plausíveis. A verdade amordaçada é uma contradição e impropriedade, pois a verdade é sempre o argumento mais forte.
“Sê fiel até à morte.” Não foi este o lema dos mártires desde Estêvão? “Senti a necessidade de vos escrever, exortando-vos a pelejar pela fé que de uma vez para sempre foi entregue aos santos” (Jd 3). No eminente e constante desafio de estar comprometida com a fé que foi entregue aos santos, esta revista se apresenta ao leitor. Fazemo-lo com humildade, reverência e tremor. Mas fazemo-lo varonilmente.
Neste primeiro número trazemos o artigo O Perfeito Equilíbrio da Verdade de Deus, onde Geoffrey Thomas, integrante da equipe editorial do The Banner of Truth Journal e pastor batista no País de Gales, procura estabelecer um equilíbrio entre algumas verdades que, aparentemente, encontram-se em conflito umas com as outras. Em determinados momentos da história da Igreja, os verdadeiros servos do Senhor tenderam a enfatizar certas doutrinas em detrimento de outras. A geração seguinte reagiu contra essa ênfase da geração precedente, e assim aconteceu o fenômeno que alguns historiadores denominam de “movimento pendular”. O autor é feliz na sua exposição, ao propor um equilíbrio em alguns dos pontos fundamentais da fé e prática cristãs.
O Supremo Dever do Pastor é um artigo do Dr. Thomas K. Ascol, pastor batista em Cape Coral, Flórida, e editor do The Founders Journal. Qual o supremo dever do pastor? Salientando os diversos aspectos que envolvem o ministério pastoral nos tempos atuais, o autor encontra, no emaranhado de responsabilidades que ao pastor se atribui, o dever de pregar a Palavra de Deus. Seu artigo é muito oportuno, mormente nesses tempos em que vozes e movimentos questionam acerca da relevância da pregação bíblica, nos dias atuais.
A. W. Tozer, pastor de uma igreja da Aliança Cristã e Missionária até seu falecimento na década de 1960, é conhecido como “um profeta da nossa geração”. Seu artigo, Precisamos Novamente de Homens de Deus, é uma convocação a agradar a Deus e ignorar a multidão, numa geração pragmática e materialista. A voz de Deus é a voz de Deus. A voz do povo é a voz do povo. Quão desesperadamente precisamos hoje dessa mensagem. Deus está procurando homens que tenham a coragem de tomar posição e assumir o preço dela, no meio desta geração. Na decadente era pré-diluviana, Ele encontrou Noé. O mundo está necessitando novamente de homens como Noé - “pregoeiro da justiça” - a quem o Senhor disse: “Tenho visto que és justo diante de mim nesta geração” (Gn 7.1).
Em Quanto ao Vir a Cristo, Ernest Reisinger, veterano pastor batista na Flórida e editor assistente do The Founders Journal, analisa os fundamentos histórico-teológicos de uma das práticas mais comuns à chamada “pregação evangelística” contemporânea: o sistema de apelo. O autor, numa análise acurada, apresenta os perigos e equívocos em torno desta prática (inaugurada por Charles Finney), entre os quais, a freqüente associação e/ou permuta que se faz entre a regeneração operada pelo Espírito Santo e um ato físico exterior. É um artigo que se enseja bastante oportuno. O que temos nesta edição, contudo, é apenas a primeira parte. Aguarde a conclusão no próximo número.
Em Sansão e a Sedução da Cultura, Roger Ellsworth nos adverte quanto ao perigo de nos tornarmos enamorados e, deste modo, divididos pela cultura. Ele o faz de maneira bastante ilustrativa, recordando-nos a história de Sansão e seu encanto por Dalila. Ellsworth conclui seu artigo, alertando sobre o dever de permanecermos fiéis e não nos deixarmos seduzir pela cultura que, por Deus, fomos chamados a influenciar.
Dois pequenos artigos complementam o conteúdo deste número. Pequenos, mas nem por isso de menor importância. Outro Evangelho é um artigo que se revela bastante atual. Foi extraído dos escritos de A.W. Pink, teólogo reformado falecido em 1952. Trata desse “evangelho” atual cuja maior aspiração é paz, unidade e irmandade. A mensagem desse evangelho objetiva tornar o mundo tão confortável e um habitat tão harmonioso, que a ausência de Cristo não será percebida, e a necessidade de Deus não existirá. As Implicacões do Livre-arbítrio, citado de C. H. Spurgeon, faz breve análise do conceito humanista do livre-arbítrio em contradição com a doutrina bíblica da livre agência do homem. O que pensamos sobre livre-arbítrio? Como isto se relaciona com a vontade soberana e a graça eficaz de Deus? Não estaremos colocando o homem onde Deus deve estar?
Uma de nossas expectativas é que essas leituras estimulem o leitor a batalhar pela fé que de uma vez para sempre foi entregue aos santos.
Não é coisa pequena ficar em pé diante
de uma congregação e dirigir uma
mensagem de salvação
ou condenação, como sendo do Deus vivo,
no nome do nosso Redentor. Não é
coisa fácil falar tão claro, que um ignorante
nos possa entender; e tão
seriamente que os corações mais
desfalecidos nos possam sentir; e tão convincentemente que críticos
contraditórios possam ser silenciados.
(Richard Baxter)
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